Você não leu errado. O título não é uma afirmação.
Mas antes de versamos sobre o tema, adianto para pedir que tome as palavras a seguir como uma conversa. Difícil. Direta. De pessoa para pessoa, combinado?
Inicialmente, planejava debutar neste blog em outro momento, com outro assunto. Mas a realidade se impôs e nos impeliu à urgência de lidar com ela. Entre receber a provocação de escrever sobre o tema e os dedos, efetivamente, deslizarem sobre o teclado se passaram seis horas – nesse período, 18 pessoas parecidas comigo morreram de forma violenta, somente no Brasil. Talvez o filho ou sobrinho de sua diarista. Talvez uma criança brincando dentro de casa. Talvez um ex-segurança sufocado sob o joelho de um policial.
Muito se interpelou sobre o impacto econômico dos protestos atuais, além de sua viabilidade em meio a um cenário de pandemia e isolamento social. Questionamentos muito válidos! A eles, acrescentaria qual o ônus financeiro dos 30 mil jovens negros brasileiros que, anualmente, são vitimados por agressão e deixam de consumir e pagar impostos, se ausentam de cargos e trabalhos e lotam sistemas de saúde?
Mas, deixemos o mimimi de lado e falemos de negócios. Segundo o estudo ‘A Importância da Diversidade’, realizado pela consultoria McKinsey & Company, empresas que investem em diversidade étnico-racial possuem 35% mais chances de terem resultados financeiros superiores a seus concorrentes. Ao caminharmos um pouco para espectros multirraciais, vemos a Organização Internacional do Trabalho (OIT) atestar que empresas geridas por mulheres são 5% a 20% mais lucrativas do que aquelas chefiadas por seus pares masculinos. Ainda sobre diferenças de gênero, levantamento da Stanford Graduate School of Business com empresas de capital aberto apontou existir relação direta entre divulgação de resultados acima do esperado em políticas de diversidade e valorização de cotações de ações. Contraditoriamente, apenas 6% dos cargos executivos são ocupados por mulheres. E 4% estão sob a gestão de pessoas negras. Penso não ser necessário trazer os números inversos das estatísticas de desemprego.
Eu não sou da paz.
Não sou mesmo não. Não sou. Paz é coisa de rico. Não visto camiseta nenhuma, não, senhor. Não solto pomba nenhuma, não, senhor. Não venha me pedir para eu chorar mais. Secou. A paz é uma desgraça…
…A paz nunca vem aqui, no pedaço. Reparou? Fica lá. Está vendo? Um bando de gente. Dentro dessa fila demente. A paz é muito chata. A paz é uma bosta. Não fede nem cheira. A paz parece brincadeira. A paz é coisa de criança. Tá uma coisa que eu não gosto: esperança. A paz é muito falsa. A paz é uma senhora. Que nunca olhou na minha cara. Sabe a madame? A paz não mora no meu tanque. A paz é muito branca. A paz é pálida. A paz precisa de sangue…
(Marcelino Freire, trechos do conto Da Paz)
Quantas vezes por dia a temática racial atravessa o seu cotidiano? Costuma considerar que negritude e branquitude são construções político-sociais? O que define a cultura da branquitude? Essa pauta costuma habitar suas discussões? O que você faz ativamente (para além do discurso) para construir ambientes de equidade racial?
Citando AD Junior, “nós discutimos o racismo porque nós sofremos. Mas o racismo não é um problema nosso. O racismo é um problema de como as pessoas brancas, na sociedade, não sabem lidar com o outro e usam estratégias dentro da estrutura da nossa sociedade para continuar oprimindo um grupo que eles acham que vale menos na nossa sociedade”.
São provocações delicadas, propositalmente desconfortantes. O estado de repouso não promove muitas mudanças. E há uma urgência por ação. Até outro dia, mesmo com pandemia, saía de casa com o rosto escancarado. Não é seguro gente preta andar com o fronte tapado. Pela minha idade e condição de saúde, é mais provável escapar de vírus do que sobreviver de tiro. Hoje, visto máscara por obrigação. Completo o look com as melhores calças e camisas em toda rápida saída. Sei que é exagero. Mas ainda não consegui convencer disso os seguranças de todo supermercado. Não confiam em nossos rostos à vista. Menos ainda, cobertos.
E você reclamando porque alguém morreu na contramão atrapalhando o tráfego. Me pergunto como é possível o asfalto não ser vermelho com tanto sangue no chão. Agora me responda com sinceridade, quantas vezes questionou a ausência negra nos espaços onde trabalhou? Quantos amigos negros sentaram no sofá da sua casa, no último ano? Quantas vezes se utilizou de algum privilégio racial para ter vantagem ou para não ser apontado por algo? Quantos autores/as negros/as leu em sua formação? E após ela? Gostaria de ser tratado como as pessoas negras são tratadas? E o que fez/faz para mudar isso?
Vidas negras realmente importam para você?